quarta-feira, 22 de março de 2017

Toda vez que chovia a vó Maria corri cobrir os espelhos do casarão de madeira, botava as crianças para dentro e ia fechando todas as portas e janelas, ia correndo na capelinha que ficava a virgem e fazia o sinal da cruz. Ia no quarto escondida olhar a fresta da janela a chuva, se ouvisse trovão corria de novo gritando para os pequenos ficarem quietos e já arrumava uma cobertas para forrar todos juntos num quarto, era mais fácil para vigiar. As crianças corriam puxavam sua saia pedindo e reclamando, queriam ver a chuva lá fora. " Mas nem pensar, e cês não tem é juízo mesmo, todo mundo no quarto agora! Mas vó num tem nada pra fazer... eles protestavam ... Então vamo todo mundo rezar meus filho, que temporal é caso sério!
E era mesmo, Dona Maria bem sabia o que falava... Já tinha seus 80 e alguns anos, e ,muita experiência dessa vida e dessa natureza ali na grota que morava desde mocinha. Se criou ali , filha de agricultores, e depois esposa também. Sofreu muito com tempos secos e aprendeu desde cedo a rezar pedindo chuva, quando era criança lembrava de que dançava e comemorava quando vinha a chuva molhar a terra. Era sinal de esperança, de muita alegria. Mas tinham anos que ela vinha era bem forte, levava as vezes a plantação inteira embora, e no desespero alguns bichos também morriam atolados na lama que se formava. Aí era triste,  e rezavam de novo para ela parar. Assim foi a vida toda. Aprendeu a rezar pedindo o meio terno, água pra molhar não o bastante pra matar. 
Mas um fato em especial marcou para sempre o coração de Dona Maria, e nunca mais conseguiu dormir em dia de temporal. O medo era tanto que tremia a noite toda, preferia então em noites de tempestade ficar de vigília, ora rezando, ora tremendo, e tentando afastar a triste lembrança daquele dia....
Aquele dia, tantos anos já tinham se passado... mas lembrava até dos pequenos detalhes de tudo o que aconteceu. Mesmo que fechasse os olhos para afastar, aí vinha aquele cheiro de terra molhada trazendo tudo de volta na cabeça...
Nesse tempo dona Maria era ainda bem jovem, recém casada, descobrindo o amor a cada dia, seu esposo um moço carinhoso de apelido Nhohô tinha ganhado seu coração, a familia foi fácil de dobrar, e entre o namoro e casamento foram só três meses. Um ano depois já seguravam nos o primeiro filho, o fruto desse amor. Um lindo anjinho de olhos grandes e cinzas como o céu em dia nublado, um menino doce, e muito tranquilo desde os primeiro dias. Foi crescendo ali naquela fazenda que apesar de pequena era bem cuidada. Na casinha de madeira simples que foi cosntruída no meio do terreno em uma parte mais alta, podiam ver de lá todo o redor das plantações e o curral atrás do córrego que rodeava até terminar lá embaixo num riozinho bonito e que Nhonhô tinha muito orgulho de mostrar pras visitas. Dona Maria, mãe precavida depois do nascimento do menino Gabriel tomou muitos cuidados, já não ia mais na roça com o marido. Acordava ainda cedinho, no primeiro raiar do sol pra tratar os bichos e cuidar da horta, e logo voltava enquanto o bebê ainda estava dormindo, ajeitava o almoço. Depois Nhonhô ia pra roça e ela se dedicava só aos cuidados com o filho e o serviço de casa. 
Gabriel foi crescendo com muito amor, o pai mesmo cansado no fim do dia sempre se esforçava em brincar bastante e contar muitas histórias principalmente sobre os bichos que ele tanto gostava. Logo o menino aprendeu a falar suas primeiras palavras, e quando chamava "pa-pá" Nhonhô vibrava. Quando estava na roça ficava já cuidando de planejar tudo que ia ensinar pro filho e o pedaço de terra que ia separar pra quando ele tivesse maior, se perdia nos pensamentos olhando pro alto de um monte que ainda era mata fechada, pensava que daqui uns anos teria que abrir por lá, daria uma plantação boa de café ali. Mas precisava de ajuda, por isso ia esperar o menino crescer. Não podia nem contar nada disso pra esposa, essa batia o pé que o filho não ia lascar as mãos na enchada de jeito nenhum, ia estudar, ser doutor, ou professor que eram profissões bonitas. Rezava todo dia pra virgem pedindo pro filho ter gosto nos estudos, e o pouco que sabia das letras ensinava o menino toda tarde, não tinham livros ali, só uma bíblia que ganhara da mãe quando casou, então tirava uns salmos e copiava no caderno uma linha, e Gabriel ia tentando copiar ainda só o garrancho mas muito sério e concentrado em acertar.
O tempo andava bem seco naqueles anos, e torciam para chuva vir pra encher o rio do terreno, através dele que molhavam todo dia o café e as bananas, que era o que dava mais dinheiro no fim do ano pra vender. Gabriel estava já com quase três anos e o pai planejava comprar um carrinho que ele namorou na loja no dia que foi na cidade. Dona Maria olhava de tarde pro céu e apontava, mostrando pro filho o tempo mudando, era fim de março chegando. O calor do verão já tinha diminuido, e o dia terminava com um vento forte, mas nada de chuva. Até que uma noite no meio da madrugada Maria acordou Nhonhô que dormia um sono pesado, gostava do cheiro da chuva, abriu a janela pra sentir. O casal namorou ali com aquele ventinho com chuva entrando no quarto, e de manhã quando despertaram já tinha estiado e o sol meio tímido saia lá de traz da montanha. Nhonhô deu um beijo na testa da mulher, foi lá ver o filho que dormia ainda no bercinho branco no outro quarto, e só passou os dedos de leve no rostinho dele, dava pena acordar. Foi direto lá embaixo ver se a água do rio tinha subido e de lá resolveu andar até a fazenda do lado para tentar negociar um cavalo que queria comprar pro filho que tinha paixão nos bichos.
Quando foi lá para meio dia Dona Maria viu que o céu escureceu de novo, já tinha dado o almoço do filho e lavava umas vasilhas, terminou e foi ver Gabriel, que brincava no chão da sala, com uma bolinha de plástico colorida. Ele sempre tranquilo não dava trabalho pra mãe, ela o pegou no colo e levou pro quarto, era hora do cochilo. enquanto ele cochilava ela gostava de bordar umas toalhas, remendava umas roupas desfeitas, e arrumava as roupinhas do menino no armário. O tempo foi fechando e parecia que tinha ficado noite, ouviu um barulho forte de trovão, parecia que ia vir a chuva de novo. Foi fechar a janela do quarto do filho, e cobriu as perninhas dele, porque já vinha um vento gelado também. Enquanto ia fechando as outras janelas passou na sala em frente a imagem da virgem que ficava no canto em cima da estante junto com a bíblia. Pensou em fazer uma reza, agradecer a chuva, mas lembrou da roupa que tinha do lado de fora ainda no varal. Foi lá tirar. Do lado de fora olhou em volta procurando se via o marido em algum canto, na certa devia estar longe, e não quis gritar pra não acordar o menino, logo ele devia voltar, todo molhado.
A chuva aumentou e Gabriel acordou assustado e gritou chamando a mãe, não falava ainda muito mas fazia sinal animado que queria ver, a mãe dizia que não, e tentava distrair ele no chão da sala com a bolinha colorida, ele brincava um pouco, logo vinha outro trovão ele pedia que queria ver da janela a chuva. Dona Maria nesse tempo não tinha medo da chuva, mas sim era de resfriado, todo cuidado que podia tomar com o menino ela tomava. Pegou ele no colo ninando e cantando, e ele se aquietou, Quando ele botou ele de volta no chão ele sentou de volta pegando a bolinha e brincando de rolar ela de um lado para o outro da sala. Pediu água pra mãe, ela foi buscar na cozinha.
Quando ia na cozinha pegar o copo de água dona Maria aproveitou pra abrir a porta da casa e ver se o marido vinha chegando já que a chuva estava ficando mais forte, quando abriu a porta se assustou com o vento forte, a chuva molhou o rosto dela, e ela puxou logo de volta a porta e fechou. Estava preocupada, mas afastou os pensamentos ruins falando pra si mesma, "logo ele chega", quando voltava com o copo de água, ouviu um trovão forte e a casa clareou por um instante, se apressou de volta pra sala onde estava o menino, imaginando que ele devia ter se assustado, quando chegou na sala outro trovão forte estorou, iluminando a casa toda de novo, mas dessa vez bem mais. Chegou a se assustar, e chamou Gabriel, ele não estava na sala, pensou que ele devia ter corrido pro quarto da mãe, se esconder na cama, como ele fazia quando ficava assustado com alguma coisa. Mas quando ia atravessando a sala pra ir para o quarto sentiu por um momento um nó na garganta, antes de pisar o pé dentro do quarto percebeu que o quarto estava claro, a janela aberta, e o menino de pé olhando lá pra fora. 
Já ia dar uma bronca nele por ter aberto a janela nessa chuva, e quando gritou de novo o nome dele e ele não virou de volta sentiu de novo aquele medo, pegou na mão do menino, ele olhou para a mãe com os grandes olhos cinzas, pareciam estar mais escuros ainda, e assustados... e ela olhou pra fora na direção do que ele olhava pela janela e soltou um " aiii" Assustada ela viu porque o menino estava assim também, a árvore que ficava de frente pra janela do quarto estava saindo fumaça dos galhos, um raio tinha caído ali, 

O artista

"Um dos principais motivos da criação artística é certamente a necessidade de nos sentirmos essenciais em relação ao mundo" Jean Paul Sartre.
Porque se torna escritor? Porque é uma necessidade. Um grito abafado que um dia precisa sair da garganta. Uma revolta com as injustiças da sociedade que nos corrói por dentro. É quando já engolimos tantas palavras que elas começam a escorrer pelos dedos. Porque muitos se calam. Porque alguns precisam falar. Representatividade. A pessoa que fala expõe o que pensa. E quando se escreve se torna real. As palavras escritas se eternizam.