segunda-feira, 15 de maio de 2017

Romance entre os fios de cabelo

Era dia de prova na sétima série, os alunos em alvoroço reclamando que não queriam fazer prova logo na primeira aula, uns viravam emburrados para guardar o material, uns ainda tentavam a questionar  a professora que ignorava os comentários e começava já a distribuir as folhas.
Eu estava ali para auxiliar, não permitir que eles colassem. A sala cheia e os adolescentes insatisfeitos, o ambiente era favorável para o ato. Sentei lá no final bem ao meio para observar de outro ângulo, enquanto a professora ficou na frente de pé.
Ali do meu lugar, passados alguns minutos fiquei a observar uma mocinha jogando seus cabelos longos para trás, numa tentativa frustrada de fazer um coque. O cabelo castanho com as pontas levemente queimadas, provavelmente ainda do verão em alguma praia, fazia umas leves ondas no final, ela levantava ele pra cima e ia juntando com uma mão puxando bem todo ele pra trás, e ia torcendo os fios formando um coque lá no alto, deixando a nuca toda aparecendo. Mas sem ter com o que prender depois de firmar o coque o soltava, e os fios ondulados iam caindo na mesa do rapaz sentado atrás dela. Ao ver a cena pensei logo em repreender a mocinha, estava atrapalhando o colega se concentrar na prova. Mas ao ver ele pegando bem de levinho alguns fiozinhos que cairam sobre a sua carteira, percebi que ele balançava sem parar as pernas por baixo da mesa.. ia enrolando com o dedo um fio bem devagar e depois soltava no ar, parava com receio dela perceber e depois quando ela ia de novo fazer o movimento de prender os cabelos no alto ele abaixava um pouco na carteira e enterrava a cabeça na prova, ficando a poucos centímetros da nuca dela. Percebi que ele respirava fundo e afastava para soltar o ar, e continuava de cabeça abaixada. E então a mocinha nesse momento mais uma vez soltou o coque frouxo com as mãos e derramou os cabelos castanhos pesados por cima da cabeça dele.
Achei que ela fosse perceber o que aconteceu e se afastar, mas ela ainda continuou como que penteando os cabelos e os jogando para trás, no rosto do rapaz. Ele que parecia estar cada vez mais agitado, balançava novamente as pernas por debaixo da carteira enquanto permanecia com os dedos bem de leve tentando enrolar alguns fios sem que a dona dos cabelos ondulados o percebesse. Ela novamente recolheu os cabelos e os enrolou, nesse momento ela deu uma leve virada de lado para trás e não pude ver, mas acredito que os olhos dela encontraram o do rapaz fixados no seu pescoço. Ela deu uma endireitada na carteira, levantou a coluna e fez de novo o coque alto, depois foi abaixando um pouco o pescoço, se abaixando na carteira e jogou de novo os cabelos sobre a carteira atrás. O rapaz parecia estar já esperando o gesto, estendeu as mãos para segurar alguns fios, e dessa vez ele não teve receio, segurou uma mecha mais grossa, enrolou nos dedos, abaixou a cabeça e a segurou e foi com o nariz fungando os fios , segurou e foi puxando mais umas mechas para trás, e vi que ele tentava fazer uma trança, torcendo uma mecha na outra, a mocinha ia jogando não só os cabelos mas todo o pescoço pra trás, e eles pareciam nem se lembrar mais de onde estavam, ele cheirando e torcendo os cabelos dela, ela deitando a cabeça entregue ao carinho.
A professora à frente da sala nesse momento fixou os olhos sérios na cena, e advertiu: Vou tomar a prova! A mocinha se assustou, recolheu os cabelos e se acertou na carteira para começar a ler as questões. O rapaz muito assustado com o flagra que a professora deu pareceu se encolher ainda mais na carteira de vergonha, e começou a dar alguns rabiscos na folha de papel, se ele fazia a prova não sei, mas de cabeça abaixada ficou até o sinal soar. Recolhi as provas dos alunos, quando peguei as dele percebi que a dele estava quase toda em branco, a da mocinha estava feita, com uma letra redondinha e desenhada. Olhei para ele e vi o seu olhar abaixando triste, e me virei e vi que a mocinha já ia saindo da sala balançando os cabelos para outro menino lá na frente.

A tia que pensava não ser preconceituosa

... você não imagina o quanto eram amáveis e dedicados, e até mesmo adotaram uma menina.. veja ela era preta, igual a .... bem preta mesmo.... é eles a adotaram... criaram como filha sabe.... tudo do bom e do melhor... e ela deu tanto trabalho.... você não imagina........

Essas pequenas frases ouvi em uma conversa no fim de semana, e só o que consegui sentir foi um profundo nó, uma bola ficou entalada na garganta. São as palavras que engoli, que não falei. De início senti raiva. Depois pena. Da criança. Dos pais amáveis que para provar o quanto são bons adotaram uma criança negra. E da sociedade que ainda insiste em separar as pessoas por raça. Ora todas as crianças dão trabalho. Se não quer ter trabalho, não tenha filhos! E eles deveriam ter a adotado por amor e não pela cor. Não lembro a palavra com a qual ela comparou a cor negra da menina, mas deve ter sido algumac comparação tão infeliz que minha mente rejeitou e prefere nem se recordar. Ah meu Deus, eu não quero saber a escala de tonalidade da cor dela!! Eu não sei nem mesmo o porque de você estar falando isso!!
Eu não sei nem ao menos se irei conseguir olhar pra você de novo sem gritar por dentro: Preconceituosa! Racista!